segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Roteiro que nem tantos outros

Ela chegou, falou com ele e já se sabia o que aconteceria.
Tem coisas que se falam em uma sombra de segundo, só com olhar.

A festa estava cheia de pessoas dançantes, bem do jeito que ela adorava. Ficava em um mirante, no alto da cidade, com vista para o mar.
Tinham luzinhas brancas de natal por cima e um DJ que tocava músicas dos anos 80, 90 e, talvez, até músicas que não existiam ainda.
Ela chegou e comprou umas cervejas para dividir em copos descartáveis entre as amigas. Encontrou dois ou três conhecidos e entre um passo e outro, mais um gole.

E aí, louca? Louca? De onde você tirou isso? Ué... sempre foi louca, desde a época da escola.
- A época da escola... não nos vemos desde a formatura, talvez? – e ela sorriu com aqueles sorrisos insinceros de quem quer deixar uma âncora ali para depois. Afastou-se olhando para ele e depois virou de costas porque estava tocando Franz Ferdinand naquela hora e a pista se tornou mais atraente do que ele.

Essas eram situações em que ela lidava bem. Jogava um papo filhodaputa e recebia outro em retorno e ria com os olhos para cima e a boca aberta. O Franz Ferdinand acabou sua letra sobre garotas não saberem de sentimentos de garotos e ela retornou para comprar cerveja e não só isso.

Vem aqui, louca! Para de me chamar assim. Você tem um piercing no nariz? Tenho... eu fiz em Amsterdam, trouxe de souvenir. Ah... Amsterdam é legal. Você ainda é ator? Sou. Eu sei, na verdade. Você está na propaganda da Tim. É... você viu, né? Eu vi, mas não reconheci você. Um dia encontrei com a Mariana e ela me disse que era você na propaganda da Tim. Mas eu não acreditei porque achava que era um cara loiro de olho azul naquela propaganda. Loiro de olho azul? Como assim? Eu sou moreno com olhos pretos! Eu acho que você estava fazendo papel de loiro de olho azul. Eu também dou aula de teatro. E, sim, pego as alunas e é sempre ótimo. Você gosta desse piercing?
- Não.

Ela tirou o ferro do nariz e atirou pelo abismo que estava atrás deles, com vista para o mar.

Por que você fez isso? Porque você não gostava do meu piercing, mas agora já estou arrependida. Você é uma idiota! É... às vezes.

Ela mirou o copo descartável e levou até a boca para mais um gole estratégico, onde olharia para ele rindo com os olhos. Engoliu a cerveja e disparou:

Você é casado? Não e você? Também não...o que deu errado? Tudo e para você?
- Um brinde.

Se dirigiram ao quiosque que vendia latão quente, mas não tinha mais cerveja. Resolveram sair da festa e foram caminhando pelo Aterro, às cinco da manhã.

Eu estou escrevendo um livro. Ele é uma negação da negação do meu próprio eu. Uma coisa meio niilista e descrente. Então você é escritor? Sabe, eu também tento ser escritora, tenho alguns livros começados. Você não vai terminar nenhum? Já leu Nietzsche? Ele fala bastante dessas negações da vida e do seu livro. Não li. Eu li Schopenhauer, ele é anterior ao Nietzsche. Eu não vou terminar livro nenhum, eu só quero outra cerveja. Você não vai terminar porque você é medrosa. Isso. Sou idiota e medrosa. E perdi meu piercing por causa disso.
- Oi, uma cerveja, por favor.

Você quer? Não, são sete da manhã. Eu não ligo. Você é uma idiota e uma medrosa e uma puta gostosa. Eu sei, mas não vou dar para você. Por protocolo ou porque você não está afim? As duas coisas. Você é uma filha da puta. Não o tempo todo, mas você deveria ler Nietzsche. Você está ficando mais interessante, sabia? Não... você raspa os pelos do peito? Não, e você raspa os da buceta? Eu raspo, mas não gosto de homem sem pelo. Eu não gosto de mulher sem pelo. Vou deixar crescer para você, então.

Ele deixou ela em casa e, na hora convencionada de pedir seu telefone, ele deu um sorriso e saiu charmoso pelas ruas às oito da manhã.
Ela não falou nada e, quatorze dias depois, esbarrou com ele de novo.
Olhou rápido, mas não sabia o que aconteceria dessa vez.

Porque ele estava acompanhado por alguma outra idiota, medrosa e puta gostosa que chegou antes.

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