quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A primeira página de dor

A primeira dor que senti foi quando minha banda preferida morreu em um acidente de avião.
Geralmente, a primeira dor que se sente é a morte do cachorro de estimação que viveu dezoito anos e um dia dormiu e não acordou, causando tristeza, mas também um certo alívio porque ele já estava sem enxergar e cagando a casa inteira. Tudo bem. Talvez eu esteja menosprezando quando a primeira dor da vida é de origem canina, mas eu tenho mesmo essa tendência. De subestimar as coisas dos outros. Só que nesse caso, eu acho que eu posso. Porque minha primeira dor da vida era realmente improvável e me pergunto quantas crianças no mundo experimentaram o desprazer de ver sua banda favorita inteira morrer em um acidente de avião.

Lembro o sábado de sol gelado em que ocorreu a tragédia. Acho que minha rejeição a sol gelado até hoje vem daquela manhã. O responsável por dar a notícia foi o meu pai, que não morava com a gente e tocou o telefone – você está assistindo televisão?
- Não.
- Ah... O avião dos Mamonas Assassinas caiu e os cinco integrantes da banda morreram.

Como quase todas as crianças de onze anos, eu não acreditei. Essa era uma banda que aparecera havia apenas um ano e eles estavam no auge do sucesso. Cantavam músicas que falavam de tudo o que era proibido até aquela altura da década de noventa – suruba, cu, merda. Eles se apresentavam vestidos de Batmans, coelhos, prisioneiros e o CD deles dormia na minha cama todas as noites. Eles sempre diziam que tinham medo de avião. Era totalmente impossível que eles morressem naquele sábado, de acidente de avião.
- Pai, que brincadeira é essa?
- Não, filha. É verdade, liga a TV. Todos os Mamonas Assassinas morreram no avião que caiu.

Rapidamente, pensei que talvez eu pudesse estar fazendo parte de um programa de televisão, quando eles pregariam uma peça em mim, com câmeras escondidas pela casa e, no final, a banda inteira me surpreenderia no meu quarto. Mas aí vi minha mãe, que apreensiva me seguia com os olhos. Levei meus pequenos dedos ao botão da TV e a primeira cena que vi foi um saco preto pendurado em um helicóptero que sobrevoava uma floresta. Naquela época, não havia toda a demagogia que existe hoje e as câmeras filmavam quase tudo. O repórter também sem filtros me contava que o avião tinha passado por uma pane inexplicável e caiu explodindo todo mundo que estava dentro. Ele me dizia com toda a sinceridade que os corpos tinham se espatifado pelas árvores e mal podiam ser reconhecidos. Do vocalista, por exemplo, só restara o peito e o braço esquerdo. Enquanto eu ouvia, via as cenas dos pedaços do avião pela selva e, eventualmente, alguma fantasia embolada em uma árvore. E eu reconhecia aquelas roupas. Os Mamonas Assassinas estavam realmente mortos.


O luto durou muito mais do que qualquer medida de tempo plausível para uma garota de onze anos. Eu não conseguia mais ouvir suas músicas, olhar para o CD, lembrar da morte em si e sentir que não haveria mesmo jeito. Eu conhecia a dor do fim irremediável, então. E, desesperada por não querer mais passar por isso, não imaginava que essa seria apenas a primeira.

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